quarta-feira, 8 de agosto de 2018

"Até amanhã" com sabor a gelado



Cheguei à água e ela boiava naquele manso vai e vem da maré a descer. Daqui a pouco ia encalhar nas rochas, e depois quando o mar voltasse a subir será que a deixava na praia? Talvez sim, talvez não. Certo, certo naquele momento era que o meu mergulho tinha de ser rápido. Fui e vim em meia dúzia de braçadas, e outras tantas escorregadelas nos limos. E a pá estava lá. Laranja, com um ar de novinha em folha - perdão, em plástico. Agarrei nela e trouxe-a segura para terra, olhando em volta não fosse ela ter dono. Ou dona.

Ninguém se acusou. Mais meia dúzia de passos e espetei-a na areia molhada. Bem visível, não fosse o dono aparecer. Ou a dona.

Distrai-me. Passou-se bem mais de uma hora. Estava a ler e ouço atrás de mim uma voz de criança: "Olha a minha pá...". "Não sabemos, filho, pode não ser a nossa", surgiu pronta a voz masculina já eu me levantara meio. Olhei, dois rapazolas e uma menina fatos de banho iguais, irmãos (digo eu), passavam naquele instante e pararam diante do meu olhar - é provável que do meu sorriso, também.

"Acho que é. Porque fui eu quem a trouxe da água há bocado, e ainda ninguém se acusou", disse-lhes. "Acha...? É que deixamos cá a nossa há dois dias e aquela é igual", diz-me o pai olhando de soslaio para a dita. "Acho, claro, acho mesmo que é a vossa. Vão buscá-la..." E seguiram, gratos, os quatro. Só que num ápice os últimos 80 cms de gente virou-se, gelado a pingar, e fixando em mim o olhar entre o tímido e o muitooooooo doce ofereceu-me um sorridente "até amanhã...", antes de "têm-te não caias" ir aos encontro daquela que era obviamente a pá dele.

Derreti.

terça-feira, 7 de agosto de 2018

Descobri, Madalena!


… acho que descobri, sabes?! A razão profunda porque é que a tua partida, quando nem te conheci em vida, espoletou uma avalanche dentro e fora de mim. Emoções contraditórias, sentimentos arrasadores, e lágrimas que não cabem na minha memória, desde quando ainda nem tinhas nascido.

Acho que descobri, Madalena.
Nos últimos 15 anos da minha vida, vi muitas pessoas de palmo e meio a partir com sofrimentos inauditos. Vi muitos pais – heróis, como os teus -, agarrados a cada diminuta possibilidade de manterem viva a sua criação, a sofrerem quase sempre num imenso silêncio, a terem de suplantar uma perda anti-natura.
Raras, muito raras vezes, pude abraçar uns e outros. Tinha um trabalho, e uma responsabilidade, em que a emoção era para deixar fora das portas das três dezenas de hospitais por onde andei, com uma legião de homens e de mulheres de boa vontade. O de Coimbra foi dos primeiros, sabes?!

Acho que descobri, Madalena.
Tenho, de igual modo, no mesmo tempo, no mesmo espaço, o imenso privilégio, a infinita bênção, de conhecer meninas e meninos que quais Ronaldos desta vida “fintaram Deus”, e não partiram quando Ele achava que tinha de ser. Ficaram para semear mais esperança, mais força, mais amor e gratidão –  sentimentos que ontem o teu pai transformou em palavras. Uns partiram depois, no seu tempo. Outros fincaram pé e alguns ainda me dão a honra de partilhar o resto do caminho com eles.

 [Recebeste o recado em P.S. sobre a Inês “dos nãos”? Olha, enviou-me outro ontem, assim: “Amanhã vou estar na piscina, e vou nadar com a minha mão direita e esquerda.” Parei o carro para lhe responder: “Fazes o favor de me enviar um pequenino filme?! Diz à mãe.” E logo à frente tirei para vocês as duas a fotografia possível de um sol lindo, amarelo suave, em fim de dia].

Descobri, Madalena!
Chama-se Alexandre, o padre. Perguntei a uma jovem ao meu lado, que deixava rolar  as lágrimas quatro a quatro. Ontem, o Pe. Alexandre convidou os teus pais e irmã, para levarem as muitas dezenas de pessoas em Oração ao Anjo da Guarda - tu, garantiu: “Anjo da Guarda/ Minha Companhia/Guardai a Minha Alma /De Noite e de Dia”. No fim, arrastou-nos numa imensa ovação. Uns longos segundos de palmas, que pareceram muitos minutos. Igual a sexta-feira.

“Somos um”, voltou ele a insistir. Um, juntos. Um, com Deus. Para terminar evocando Sta. Teresinha: “Não é a morte que virá buscar-me, é Deus.”

Voltei a casa de coração transbordante outra vez e ainda mais: com longos e muito fortes abraços da tua mãe, do teu pai, do teu avô… colados à alma. Tudo porque tu existes. Até já.



domingo, 5 de agosto de 2018

Conseguiste, Madalena!

É meio-dia, e não saio da penumbra do quarto. Os estores corridos. Lá fora a temperatura continua a subir, a caminho dos 43º dos últimos dias, aqui. Escrever não sei o quê não me sai do coração. Desde quarta-feira. Quarta-feira, 1 de Agosto, a notícia fez explodir em mim bem mais de uma década de recato – a Joana vai ajudar a perceber.

Não te conhecia. Não sabia o teu nome. Ouvi a notícia no Jornal da Noite, na véspera, entre uma enxurrada de outras, lidas como se a vida fosse uma desgraça pegada. Tenho carteira de jornalista há 37 anos, mas optar por não exercer há 15 faz cada vez mais sentido. Não poderia ser um destes arautos do infortúnio. Banalizar o horror.

Na quinta-feira, no Club onde trabalha o teu pai, as caras estavam fechadas, o silêncio era imenso, romperam-se normas com a verdade e serenidade de que há valores intransponíveis. O da vida. O da solidariedade. Iniciámos a aula de Total Condicionamento com um minuto de silêncio, por ti e para ti. Contigo. E toda a prática foi sem música.

Sabia lá eu onde era a igreja de Queijas. Cheguei em 10 minutos, depois de noutro tanto surpreender a D. Leonor celebrando os seus 99 anos. Levei-te o girassol. Já estavas rodeada de centenas deles, cada um mais bonito que o outro. Senti-te serena, num sono de quem cumpriu a caminhada com louvor.

Nunca vi nada assim, excepto com aquelas pessoas que têm vidas mais ou menos longas, mais ou menos públicas. Tu tinhas 10 anos. Jogavas basquete. Ias à escola. Eras escuteira. A filha mais nova do Marco e da Susana. A irmã da Daniela. Na partida, foste acompanhada por milhares de pessoas, num hino à vida.

Voltei à igreja na sexta, pelas 10. Guardarei para sempre o jovem escuteiro, que apanhado pelo choro não conseguiu terminar a Leitura, concluída com firmeza pela camarada ao lado. Curvo-me diante do padre que assentou a homília no XXI capítulo d’ “O Principezinho”, e cuja voz embargada deu lugar a lágrimas. Limpo o rosto com as duas mãos, a humana confissão do mensageiro do Senhor: "Nenhum de nós devia estar aqui, agora.”

Faltam-me todas as palavras para a Susana, mãe-coragem, que suplicou com a insistência daquela que talvez seja a maior dor do mundo: "Vamos ser felizes! Prometam-me...", olhando acintosamente para os companheiros escutas, em particular para os que resgataram a filha ao rio.
Os nossos corpos “estoiravam” ao sol de meio-dia, mas do cemitério ninguém arredava pé. A avioneta cruzava o Céu em círculos [“Muito obrigada por tudo, Madalena. Até já”], e as dezenas de balões brancos mais o golfinho azul desapareciam lá no alto, enquanto soavam as tuas músicas preferidas.

“Um dia vou conseguir abraçar o Sol”, dizias. Concordo com o padre “do outro mundo”, cujo nome ainda não sei: conseguiste! Estás nos braços de Deus. Ele é o Sol.

E eu reconciliei-me com a Igreja Católica, quase 50 anos depois. Obrigada, Madalena! Até já.
Baléu
P.S. - Vais gostar de saber: a Inês "dos nãos" conseguiu fazer dois desenhos com a mão direita, e enviou-me agora por whatsapp.